30.5.25

A palavra muda

The Art of Noise & Duane Eddy, “Peter Gunn” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BpmJ08Dms-I

Os sonhos que se abatem no filão das dúvidas orquestram palavras mudas. Esmagam-se contra o peito sobressaltado por sonhos sem paradeiro. Se fossem inventariadas, dariam umas páginas inteiras de silêncio. Esse seria um silêncio significativo. Um silêncio composto de significados múltiplos, deixando ao intérprete do sonho a latitude para o descrever.

Por dentro da subjetividade, a palavra muda. De intérprete para intérprete, o sonho difere. Mais diferem as palavras que se colocam na bordadura do sonho. Não se convoca o uníssono, que os olhares diferentes que se deitam sobre os sonhos angariam as diferenças em que radicam. Muda a palavra muda, o seu sentido escondido no silêncio intuído a cada olhar diferente sobre os sonhos acontecidos.

A palavra que muda não deixa de ser uma muda palavra que entronca na diáspora dos sonhos. Quantas vezes asfixiamos a palavra dentro de um silêncio imposto e o emudecimento da palavra se alinhava numa diplomacia invisível? Dizem que devemos medir as palavras. Porque há as palavras que são devastadoras e deixam cicatrizes entranhadas no tempo e outras que são um elixir que não se apaga com a duração do tempo. Somos os próprios cientistas das palavras; é a nós que compete a alquimia das palavras que convive com o tempo e o lugar em que somos circunstância.

Sabemos que a palavra muda quando emudece depois de a resgatarmos à fala. Deixá-la soar ou torná-la muda pertence à nossa vontade. Podemos mudar uma palavra, libertando-a da mudez para silenciar o silêncio, ou limitando a sua voz, endossando-a à mudez. Devemos ser os únicos artífices da mudança de condição que atribuímos às palavras. 

Se a palavra é muda, o silêncio torna-se imperativo. Podem passar muitas marés, podem os ventos soprar de diferentes latitudes, podem as noites suceder-se como vilegiaturas ou hibernações; quando muda a palavra que deixa de ser muda, convocamos o silêncio desfeito a favor de uma causa. 

29.5.25

Cortar a rente

Electronic, “Getting Away with It”, in https://www.youtube.com/watch?v=svz0USluN50

Não há lugar à displicência. O afoguear episódico insurge-se contra a lucidez. As palavras emudecem na sua transfiguração. Ganham outro sentido, substituídas por silêncios demorados. Desaprendemos a ser gregários, mergulhados num profundo egoísmo, como se dispensássemos os outros exceto para cumprir o egoísmo em que nos consumimos.

Diz-se que não há lugar à comiseração. A indulgência é indigente e move-se por sórdidos caminhos que conspiram contra os beneficiários da comiseração. Pode ser apenas uma forma fingida de dispensar a simpatia com os que precisam de ajuda. Um pretexto para isolar a bondade, como se ela não fosse precisa para sindicar a natureza humana. 

Entre o cortar a rente, deixando desamparados os que não têm corrimão para se agarrarem, e a medida inválida da generosidade descoberta depois do tempo, o plano está inclinado para a primeira hipótese. Exige menos compromisso. É mais desumana. Encerra um paradoxo que poucos conseguem medir: tamanha medida de desprezo pelo cuidado dos outros é a cínica confirmação do descuido próprio: ninguém pode afirmar de viva voz que o futuro não se torna adverso e que sua será a vez de figurar entre os que peticionam a bondade dos outros. 

Cortar a rente quando os outros estão sentados num dos pratos da balança pode ser o pior dos tiros no pé. Ninguém pode afirmar que é uma ilha imorredoira, mantendo os outros a uma higiénica distância de segurança; não é legítimo insistir na desajuda aos outros por não precisar da ajuda de ninguém. Todavia, a bondade não se memoriza como o juro demorado em proveito próprio. Se for um investimento na redenção diferida, reduz-se ao ensimesmar de quem vira o rosto ao passar de uma alma que desespera por uma mão estendida na sua direção. 

A título de exemplo, uma mnemónica para romper com a indiferença estabelecida: antes de pagar a conta (no café, no restaurante, na mercearia, onde quer que seja), oferecer-se para pagar a conta de quem está a seguir. Às escuras, sem saber quanto será a conta e se a pessoa beneficiada precisa de generosidade. E depois, passar a incumbência. No dia seguinte, é a vez dessa pessoa se oferecer para pagar a conta de quem vem atrás. E assim sucessivamente. 

28.5.25

Ministério do futuro

Mark Lanegan, “I Am the Wolf” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=VjeUpiTZel0

As pessoas estavam viciadas no futuro. Só queriam saber do futuro. Às escondidas, pagavam a videntes. O negócio prosperou. Os oráculos, se fossem uma indústria instalada, seriam o sector da economia mais popular.

O vício do futuro era como uma doença de que as pessoas não se conseguem desprender. De cada vez que um oráculo era desmentido ao chegar a vez do futuro, mais as pessoas investiam noutros oráculos. Não aprendiam com a recusa de o futuro fazer a vontade às profecias indigentes herdadas de tempos antes. A dependência do futuro – de querer saber os contornos do futuro –mascarava o presente anódino, um presente que se tornava indiferente porque as pessoas queriam desembaraçar-se dele e tudo apostar no futuro. 

O governo tinha prometido, durante a campanha eleitoral, formar o ministério do futuro. Não podia ser indiferente à dependência do futuro e de como os cidadãos tendiam a viciá-lo com o recurso sistemático a profetas esotéricos que os convenciam que tinham uma poção mágica para destapar as bainhas do futuro. O ministério ia regulamentar o futuro. 

A primeira dificuldade era escolher o/a ministro/a. Teria de ser alguém que dominasse as artes de tourear o futuro. Ou seja: um carteirista encartado que tivesse o dom de hipnotizar o coletivo e que o convencesse que o futuro seria de uma certa forma. Se o futuro viesse desmentir as garantias estatais sobre ele próprio, o ministério cuidaria de arranjar as desculpas, ou os pretextos, que, a propósito de uma inesperada alteração das circunstâncias, permitiria uma sindicância indolor (para o ministério; não para os cidadãos que acreditaram nas garantias do ministério).

Para acautelar possíveis desvios entre o futuro e os planos para ele, o ministério teria de repetir advertências indeclináveis: o futuro tem mau-feitio, costuma mover-se desenfreadamente e contra as promessas de descodificação feitas por uma interminável corte de voluntários para a decifração do futuro. O ministério descia ao nível da charlatanice instituída. O/a ministro/a teria de lidar com os descontentes com o futuro que lhes calharam em sorte. Era uma tarefa encorpada. Para se desembaraçar dela, teria de ser alguém que se distinguisse pela capacidade de argumentação. Alguém que, com um toque de Midas, convencesse a turba com os argumentos menos convincentes. Para começo de funções, o/a ministro/a instituiu os panos negros obrigatórios que se deviam abater sobre o futuro. Assim puído, mais indeterminado o futuro se tornava. Afinal, o ministério do futuro continha a sua auto negação. Quando deixasse de fazer sentido, é porque já só um punhado de cidadãos continuavam a acreditar que se podia domar o futuro. 

As pessoas ainda estavam viciadas no futuro. Desaprenderam o presente. Pareciam fantasmas errantes a passear pelo mundo, esvaídos de interior.

27.5.25

Os eternos candidatos a esculturas (contradição de termos)

PJ Harvey, “Angelene” (live at Sydney Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=YQDXwVRA8-s

A fama anda sempre em alta na bolsa dos anseios. É numeroso o exército de aspirantes a um banho de fama. Não contam aqueles efémeros cinco minutos de fama, que depressa caem no olvido logo na hora a seguir, a menos que a instantânea fama seja ateada pelo risível e a personagem permaneça na memória coletiva, não pelas melhores razões. Este caso é análogo a um banho de lama.

Deve ser um propósito de vida, umas vezes admitido sem desvios, outras ficando guardado no alforge onde habitam as matérias inconfessáveis. Uns querem que os tempos póstumos sejam pródigos com uma inscrição na toponímia local. Outros são mais ambiciosos: querem ser imortalizados em estátua. Para os candidatos entenderem as probabilidades, a segunda empreitada fica reservada a um escol. A menos que integrem um grupo restrito que já alcançou a fama em vida e autorizam a sua estátua que se dá a conhecer ainda em vida. Aqueles que não se importam em ficar imortalizados em estátua em vida são a consequência do seu narcisismo irrecusável. Ou não deram conta que a estátua é uma maneira de os antecipar entre os moradores da república dos mortos.

Ser estátua, sobretudo em vida, não deve ser agradável (exceto para os que não cabem dentro de si). A estátua é imorredoira, mas é um inerte. Por mais que o simbólico seja convocado, aquele massa inerte de materiais esculpidos é um corpo morto. Quem, entre os vivos, gosta de ser o sujeito que se entrega a uma estátua sabendo que as estátuas costumam representar mortos e que são compostas de material inerte? Uma estátua pode glorificar a vida do retratado, mas é (quase) sempre um ato virado para o pretérito de alguém que deixou de figurar entre os vivos. 

Os que não escondem a ambição de ser estátua não ajuízam o futuro em seu favor. Está na moda mutilar as estátuas quando elas representam alguém que diverge do pensamento modernamente correto. Admita-se que essas pessoas pressentem que cultivar o incomensurável ego se esgota no momento em que passam a desabitar o inventário dos vivos, o que não será compatível com catecismos vários que assentam nos pressupostos da vida eterna e da perenidade do espírito. Fora dessa hipótese, não interessa aos sujeitos esculpidos saber que a estátua pode ser ultrajada ou até mutilada pelos militantes contemporâneos de ativismos de variada cepa. Nessa altura, já não estão entre os vivos e as ciências positivas ensinam que estando mortos não estão de atalaia. A consciência do nada que herdam com a morte também os alivia da ansiedade de saberem se foram contemplados a emprestar o corpo, ou apenas o rosto, a uma estátua. A menos que lhes tenha sido ajuramentado, ainda em vida, uma estátua póstuma.

Terá o exposto sido convincente para aliviar as dores de decrescimento dos autopropostos candidatos a uma estátua?

26.5.25

Fábrica de revisões constitucionais

New Order, “Shadowplay” (live in Glasgow), in https://www.youtube.com/watch?v=VISTnle1zh4

Uma revisão constitucional não se faz de ânimo leve. Mesmo que se evoque o atavismo do documento: há palavras que não passam de figuras de estilo, representando a historicidade de um tempo que não pode ser banida quando mudam as circunstâncias. Os resultados das eleições ainda não assentaram e dois partidos à direita (um de direita moderada, o outro de extrema-direita) já enchem a boca com promessas de revisão constitucional.

(Antes de continuar com o raciocínio, exponho uma declaração de interesses: ideologicamente estou próximo de um destes partidos – e não é o de extrema-direita). 

É cedo de mais para pensar numa revisão da Constituição apenas porque os partidos que não são de esquerda reúnem uma maioria de deputados suficiente para aprovar a revisão. Este “apenas porque” tem uma força gravitacional que não pode ser desprezada, pela mudança de contexto no sistema partidário que resulta das eleições e pelo ineditismo desse contexto na História da democracia. Os militantes e simpatizantes de partidos situados à direita quiserem aproveitar a mudança de contexto, mas a pressa pode traí-los.

Primeiro, o argumento do líder do Livre: as mudanças na Constituição não podem estar na agenda da legislatura porque o assunto não foi contemplado na campanha eleitoral. É uma iniciativa destituída de legitimidade. O receio é compreensível (para o Livre e os demais partidos à esquerda): com uma super maioria de deputados, uma maioria que não era sonhada antes das eleições, os partidos à direita podem mudar os alicerces do regime político (ainda que, em alguns casos, do foro simbólico) através da revisão da Constituição. Daí ao esbracejar de fantasmas do “fascismo” vai um pequeno passo. Todavia, o argumento da ilegitimidade não tem vencimento. Era o que mais faltava, não poder tratar de temas que não apareceram durante a campanha eleitoral mas que, por uma alteração de circunstâncias, passam a figurar na agenda política. A fraca retórica política confirma o desnorte que tomou conta das esquerdas.

Segundo, a legitimidade política da revisão constitucional assenta na existência de uma maioria de deputados superior a dois terços. Esse é o limite definido pela própria Constituição, não o resto que elucubrações oportunistas possam sugerir ou insinuar. A revisão da Constituição contém os seus próprios limites, com normas que não podem ser mudadas sob pena de tornar ilegítima a revisão que as retirar do texto. Esta garantia sobrepõe-se aos (possíveis) excessos de voluntarismo dos promotores da revisão constitucional.

Terceiro, pese embora os partidos à esquerda protestem antes de o processo se iniciar (se se iniciar), e sendo certo que não podem ser coibidos de manifestar as suas posições, mal andaria a democracia se um terço dos deputados fizesse vingar a rejeição da revisão constitucional. 

Quarto, os fantasmas que adejam pela voz dos partidos à esquerda vieram a palco antes do tempo. As prioridades dos três partidos à direita são diferentes. À partida, parece ser mais o que os desune. Atingir um mínimo denominador comum entre estes partidos parece uma missão impossível (com o conhecimento de hoje sobre as agendas dos partidos). Isso devia sossegar os partidos à esquerda. Acabam por ser reféns de si mesmos e da teimosia (ou a convicção apenas eleitoralista) de que os partidos à direita são todos iguais e que o maior deles, mais tarde ou mais cedo, vai negociar com o partido da extrema-direita.

Quinto, fica a pairar a impressão de a revisão constitucional é um movimento oportunista. Agora que estes partidos reúnem um número de deputados superior a dois terços podem congeminar uma revisão constitucional. A sensação de oportunismo não quadra com a seriedade do processo de revisão constitucional. O oportunismo traduz a superficialidade com que o assunto está a ser tratado.

Apressar uma revisão constitucional não ofende a legitimidade jurídica e política do processo. O momento e o contexto não podem ser desprezados. No momento presente não estão reunidas as condições para uma revisão constitucional. A legislatura ainda nem sequer foi inaugurada. Como prova de moderação, os promotores da ideia podiam-na adiar para a próxima legislatura. Todavia, os partidos à direita podem não querer esperar, talvez por terem fundadas dúvidas de virem a repetir a maioria extravagante com que não contavam. Ou é durante esta legislatura que se consuma a revisão constitucional, ou tão cedo o contexto político favorável se repetirá. 

Ora, precipitar o processo de revisão da Constituição não boa política. Para o bem ou para o mal (depende das perspetivas), a Constituição está impregnada de uma matriz. Os elementos mais ideológicos não comprometem a ação governativa nem atrasam o desenvolvimento do país. Quase cinquenta anos depois da aprovação da Constituição, esses aspetos ideológicos não passam de uma curiosidade antropológica. 

Mesmo que os partidos à direita insistam em banir a carga ideológica da Constituição, prever que o assunto só será tratado na legislatura seguinte teria três vantagens: por um lado, os promotores da (futura) revisão constitucional davam provas de moderação; por outro lado, mostravam-se sensíveis aos interesses dos partidos à esquerda, numa manifestação de abertura e tolerância que servia de lição; por fim, ao serem sensibilizados para a possível revisão constitucional na legislatura seguinte, a legitimidade para consumar a revisão constitucional seria confirmada se o voto dos eleitores repetisse a super maioria nos partidos à direita. 

23.5.25

O preço da arrogância

Cara de Espelho, “Elefante no Hemiciclo”, in https://www.youtube.com/watch?v=1CxKz1J76PA

Sentados em cima do autoconvencimento, desperdiçam a aprendizagem do seu contrário. São insensíveis aos que não se servem da mesma lente para observar as coisas do mundo. Mas denunciam um soi-disant “pensamento único”, como se eles, fieis à autoimposta tirania da única verdade possível, não fossem mecenas de um pensamento que, na sua maneira de ver, deve ser o único admitido a concurso. 

Para reforçar o comportamento retorcido, aparecem montados numa arrogância típica de quem está muito seguro das suas ideias e da inviabilidade absoluta do que for defendido em sua negação. Se os votos contados nas urnas os colocam na posição de derrotados, multiplicam variegadas explicações que se fundamentam em fatores que lhes são externos: a imprensa está a soldo dos adversários (mas estes diriam que a imprensa trata com condescendência os circunstanciais derrotados); a prodigalidade do “grande capital”, tão generoso com os adversários, acentua as diferenças de acesso aos meios, inclinando o plano a favor destes; o mundo está sujeito a uma maré que lhes é adversa e o país limita-se a cavalgar essa maré; a maioria dos eleitores não os compreendeu e eles pagam pela injustiça de serem treslidos; ou a maioria dos eleitores não alcançou a superioridade das suas propostas, ficando à margem das vantagens que elas proporcionariam – numa fórmula sofisticada de questionar a lucidez dos que escolheram outras propostas a concurso, desatando um nada sublime eufemismo para os votantes apedeutas. 

Não percebem que os titânicos esforços que justificam a derrota nas urnas deitam mais arrogância em cima da arrogância precedente. O omisso fair play democrático deixa sinais reveladores dos seus pergaminhos. Em parte, admita-se, é o resultado de quem ficou órfão de referências depois da hecatombe. É uma reação lógica se se limitar ao intervalo de tempo em que a espontaneidade é ativada. Se ultrapassar a reação instantânea e se prolongar no tempo, encerra um comportamento que também levanta perplexidades. Pois os eleitores só têm lucidez se não colocarem estes partidos na desagradável posição de perdedores. O discernimento dos votantes é levado a uma condição volátil: umas vezes votam como deve ser, outras vezes não. Até há quem deixe cair esta inconfidência: se era para votar sem lucidez, antes tivessem ficado em casa.

A incapacidade para a tolerância é uma das marcas de água. Como recorrem com assiduidade a imperativos categóricos, a julgamentos ad hominem, à superioridade moral, ao discreto vitupério dos adversários, a arrogância é outra marca de água que trazem tatuada. Outra ainda, como alicerce da anterior, é a displicência com que se comportam e argumentam. Tudo arrematado num cocktail que os impede de serem observadores por fora de si mesmos. Desta incapacidade para medirem nos outros os efeitos das suas certezas incontestáveis traduz-se o seu fiasco. Não entendem como a arrogância é contraproducente. Quanto mais carregarem na tecla da arrogância, expondo a insolência de quem isola os adversários num lugar não recomendável e sem direito a redenção se não a de atestarem a razão dos seus propósitos, vão empilhando sucessivas camadas de arrogância que empurram cada vez mais gente para um lugar que é a antítese do lugar por eles ocupado.

O preço da arrogância é a sua gradual irrelevância. A culpa não é deles. É dos que, com a caneta dirigida ao boletim de voto, são incapazes de perceber como bondosas são as suas ideias e as suas propostas. Depois ficam abespinhados porque os radicais que tanto combatem têm cada vez recetividade eleitoral. Não alcançam os anticorpos dessa arrogância venal.

O preço da arrogância é um bando de radicais alimentar a existência de outro bando de radicais.

22.5.25

Cotovelos em cima da mesa

Pulp, “Spike Island”, in https://www.youtube.com/watch?v=-27a1ugJX8U

Arrotos sintomáticos. Flatulência, até em público. Desábitos de higiene que são o idioma de um odor desagradável a quem se abeire. Maus modos à mesa, com a boca esfrangalhada a deixar à mostra a comida abundante que foi desengarfada. E os cotovelos em cima da mesa, ostensivos, presunçosos. Uma sobredose de misantropia, todavia mal fingida.

E a intrepidez com que confrontam aqueles que discordam, confundindo audácia com má-educação. O princípio geral da boçalidade como código de desconduta. A soberania da hipocrisia e a bravura ociosa de quem a exerce quando os outros estão pelas costas. As falas sobrepostas às falas dos que começaram a falar. A falta de respeito pelos que divergem. Os perdigotos cuspidos pela sofreguidão com que se atiram à defesa de uma causa (erradamente confundindo com “defesa de honra”). 

A substituição da ciência pela crendice e pelas ideias forjadas a eito. A provocação como expediente, ostensiva e não recíproca. As entorses da História. O permanente estado de negação quando aos olhos o observado não é oportuno. A afronta gratuita e a injúria assídua. O gozo fátuo à custa da ausência de espelhos. A covardia de quem se acoita na seita, incapaz de sair da guarida para se propor à sindicância do exterior. O escarro descuidado que polui o chão e quem dele é testemunha. A masculinidade tóxica como pano de fundo e a subordinação acrítica no feminino. 

O revisionismo do passado, como se não soubessem que a especialidade foi apanágio de quem tanto divergem. A terraplanagem do presente como pressuposto de um porvir retrógrado. As invocações divinas como cimento de fidelidades caninas. As vozes tonitruantes que tomam conta do palco enquanto os outros se apegam a um silêncio propedêutico. A promessa de violência como critério para resolver pendências. A mentira como contrato com os outros e como vértice de cenários alternativos que se consomem de ilusões em barda. A beócia condição como chave de fendas da convivência social. Um autêntico desexemplo. 

21.5.25

Não me chamem pelo nome

DIIV, “Return of Youth”, in https://www.youtube.com/watch?v=4nnTlht0xUE

Fiquei para o fim, foi de propósito. As pessoas que chegaram depois passavam à frente, com a ajuda da minha indiferença. Avançavam na fila que se congeminava na rampa de acesso ao edifício. O edifício não tinha nome. Procurava saber por que tinham escondido a toponímia, como se o edifício tivesse sido acometido por uma doença moderna que trata as pessoas por “senhor” ou “senhora”, ou por “você”, ou então por um número retirado da máquina das senhas que define a ordem de chamada.

As pessoas entravam, mas não saíam pela mesma porta. Haveria outra porta que ordenava a saída, talvez para impedir atropelos entre quem esperava por vez e quem se desembaraçara da função. Ou apenas para que os que estavam à espera não fossem informados do ritual por aqueles que tivessem sido atendidos. Se fosse próspero o campo por onde transitam conspirações (o que não significa que não seja), a angústia começava a causar suores frios nas pessoas com propensão para o género ao verem que outros não saíam pela mesma porta por que entraram.

Confirmou-se: as conspirações tinham de ser gastas alhures. Era preciso passar por alguns guichets, como se à entrada fosse preciso fazer o check-in nos aeroportos e depois, em sucessivos postos de atendimento, as pessoas desapossavam-se de paciência para fazerem o favor à imperativa burocracia. Os que conseguiam refrigerar a impaciência notavam o zelo dos burocratas e a impessoalidade no trato. Os burocratas não olhavam as pessoas nos olhos, nem sequer levantavam a cabeça para verem quem atendiam ao chamarem pela senha “número tal”. Despachavam o expediente. As pessoas perfiladas eram o seu expediente.

Quase no fim, depois de várias paragens para repetir procedimentos, uma funcionária repetiu o ritual: sem levantar o rosto, os olhos sempre mergulhados na montanha de papeis residentes na secretária, chamou pelo nome. Pela primeira vez, deixara de ser um nome, ou o “senhor”, ou apenas um intrusivo “você”, para ouvir o meu nome entoado com as sílabas nítidas. Retorqui: “não me chamem pelo nome, não aqui dentro, neste antro de impessoalidade trespassado pela fria burocracia. Prefiro não ouvir o meu nome. O número de atendimento é suficiente, condiz com a tarefa. Se não se importa.” – e rematei a frase com o nome da funcionária, identificado à lapela.   

20.5.25

As nuvens plúmbeas que dançam com o futuro

New Order, “Sunrise” (live at the Hacienda), in https://www.youtube.com/watch?v=v-Ttkqc02cQ

Que dia merencório amanheceu, depois da sísmica colheita eleitoral. Contam-se as espingardas, as que foram depostas por oposição às que se hasteiam no orgulho dos vitoriosos. Pesa sobre a manhã um odor a apocalipse. De um lado, espingardas desembainhadas cospem espectros sobre o futuro, sobressaltando as consciências cívicas que têm medo que o futuro entre em ligação direta com o passado hediondo. Do outro lado, o pesar que se mistura com temor que por sua vez se confunde com mal disfarçados lampejos de intolerância. Agora que o tabuleiro ficou virado do avesso, desconfia-se da lucidez de quem tutela a soberania. Eis o testemunho dos maus pergaminhos democráticos de quem assim se comporta. 

São densas as nuvens que se acastelam sobre o dorso do dia. São um peso tremendo arqueado sobre o futuro. Trivializam-se profecias de apocalipse, que até podem não ser infundamentadas. A palavra democracia está em vias de banalização, esgotando os seus atributos enquanto conceito que baliza o sistema político. As recriminações recíprocas enquistam-se em vozes bruscas e trovosas, dando corpo à polarização que se cristaliza e ameaça amputar a lucidez. A acrimónia reproduz-se nos códigos de conduta que se adulteram a uma velocidade relâmpago.

O futuro que se entretece é como um aviso vermelho emitido pelos serviços de meteorologia: tempestades previsíveis abater-se-ão sem dó, levando das pessoas os alicerces da serenidade que era património comum. O que não é previsível é o cenário depois da passagem das tempestades. Será um lugar irrespirável, destroçado pelas espadas de sinal contrário que se terçam no usufruto da força beócia? Será um lugar dilacerado por retóricas exaltadas que se autoalimentam de intolerância? Será um lugar onde o espaço da dissidência tende a ser ostracizado, atirando quem pensa de modo diferente para uma condição pária? Será um lugar trespassado por diálogos de surdos, onde já ninguém consegue falar com os outros?

Na radicalização emergente fermenta o ódio recíproco, a intolerância em que medra a intolerância de sinal contrário, as palavras que são atiradas contra o outro, desprovidas de sentido construtivo. Virá de trás para o futuro a destruição das ideias contrárias, o anátema gratuito sobre o adversário (que se esgotará nessa condição, depressa transfigurado em inimigo), a contaminação dos espaços até então moderados, seja por oportunismo (para seduzir os inebriados pela radicalização em curso), seja por espontânea conversão ditada pelos sinais do tempo, multiplicando-se as vozes iracundas que se mobilizam com o propósito de desfeitear as vozes opostas. Com grandes custos para o futuro que se esconde atrás do horizonte, adiado para incertas núpcias por omissão de ideias e de propostas que corrijam as fragilidades hiantes. 

Temo que esteja inaugurado um Inverno tenebroso e de longo alcance, empobrecido por demoradas noites árticas. Temo que o incerto despontar futuro da primavera dê a conhecer os destroços do longo Inverno que se abateu, pois os olhares embaciados pelo crepúsculo perlongado não conseguem medir, colonizados que estão pela escuridão, os danos entretanto adicionados pelos próceres da radicalização em curso. 

E temo que uma vez feito o inventário, ainda a tempo de uma incursão heurística que nos extraia da corrida para a demência coletiva, esteja em falta a capacidade para resgatar a lucidez. Nessa altura, estaremos à mercê dos demónios nascidos do úbere das plúmbeas e demoradas nuvens em que cristalizámos, sitiados pelo pensamento autónomo que mirra em cada apeadeiro da intransigência, à mercê das chuvas ácidas derramadas por essas nuvens. Seremos parias de nós mesmos, a soldo dos loucos que nos anestesiaram.

19.5.25

Louco por ser louco (short stories #488)

PJ Harvey, “Send His Love to Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=rsUIl7qVzYw

          Uma cabeça com dor – ou uma dor de cabeça – chama pelos bombeiros que podem apagar fogos como os garfos se desembaraçam da comida. Uma aranha pendida disfarça o babo com que urde a teia que fica por conta dos embaraços. As tangerinas colonizadas pelo bolor ficaram esquecidas na fruteira e emprestam um aroma a fim de estação, o doce dos frutos assaltado pela vilania dos bolores que adulteram a cor original. No cais, as pessoas esperam pelo navio e não olham umas para as outras, não olham umas pelas outras. São más novas para os embaixadores do otimismo. Ao menos, numa rua centrípeta da cidade um homem descuidado arrasta-se e proclama um poema de autor desconhecido. Procura definições, como se precisasse de provar a erudição. As pessoas passam, quase indiferentes. Olham de lado, desconfiadas. Outras, com o enfado próprio de quem reprova os andrajos e o sarro que o candidato a poeta (ou a declamador de poesia) traz à mostra. O dia aproxima-se do entardecer, as pessoas não disfarçam o cansaço. A proteção divina está em saldos. Desengane-se o amanhã, que não será muito diferente (a menos que uma conspiração entediante nos deixe às escuras, mesmo sendo dia). No jardim sobranceiro ao rio, os namorados apreciam a paisagem enquanto afagam os dedos reciprocamente. Digerem o silêncio. O poeta maldito, agora apessoado, passa vagarosamente. Entoa outro poema aparentemente desconhecido (ou é apenas o desconhecimento da toponímia poética a dar de si). O rapaz continua absorto na languidez da paisagem que se entretece na luz tímida que se emancipou de um nevoeiro furtivo. A rapariga desvia o olhar e acompanha as estrofes. Sente a maresia entranhada nos poros. À noite, quando estiverem sozinhos diante da solidão, cada um dirá um poema ao outro antes do deitar. Pode ser que passem da candidatos a loucos.

16.5.25

Quando falo, não ponho aspas

Jon Hopkins, “Open Eye Signal”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q04ILDXe3QE

O espaço não é feito de curvas sinuosas – a fala discorre numa linha contínua e não são as entrelinhas que a travam. Digo: quando falo, não ponho aspas. E cresce a desconfiança lá fora, os olhares embotados sacrificam um olhar feito de frente, como se receassem um temível choque frontal com sangue derramado, feridos em inventário e traumas para memória futura.

Esta fala não se encomenda por misteres alheios, reinventa a gramática dos sentidos e posa sem solenidade averbada. Desencanta o pueril lirismo encantatório. Rude, dizem, uma fala que se desembraça dos pudores que são a tábua onde convivem os variegados códigos de conduta. Rude, mas necessária: tempos estes, contaminados por uma hipocrisia que se confunde com covardia, e as palavras que devem ser ditas quase sempre não sobem à boca de cena.

Nem que espinhosas sejam as palavras imperativas, deixando um ardor demorado depois de terem sido ditas, elas podem ficar por inventariar. Podem outras pessoas, que se consideram atingidas pelas palavras rudes, arrumar-me para o canto onde isolados vegetam os condenados à misantropia. É indiferente. Ele há sempre embaixadores das palavras que arranham o pensamento, das palavras que, se treslidas, depressa se alistam no património das injúrias. Não me demovo de dizer essas necessárias palavras com o olhar levantado que parte em demanda do olhar outro, para não ficarem dúvidas sobre as intenções.

Não é preciso audácia para arrumar as aspas numa gaveta onde jazem os objetos condenados ao oblívio. A invulgar maresia que marca o compasso dos tempos atuais é culpada pela retratação da sinceridade, como se a sinceridade integrasse a listagem das coisas proscritas. O temor de atingir os outros não adere à lisura de que se tece a frontalidade. Aspas avulsas crescem no dorso da hipocrisia, do respeito pelos outros que não passa de pretexto para vedar as bocas até então insubmissas.

Estar dependente de aspas torna as palavras anãs. E a liberdade fica a meia-haste.

15.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (posfácio, uma nota técnica)

Tricky, “Christiansands” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=hBpSJ-Lt94A

O mundo quase inteiro tropeça em erros flagrantes que seriam evitáveis se as pessoas tivessem um módico de formação, ou se se informassem com quem de direito. Há termos que não podem ser objeto de tradução literal, para a palavra que no idioma nativo é o decalque perfeito da palavra retrovertida. Há palavras com sentido técnico que exigem contextualização, escapando à tradução literal.

O mundo inteiro é, para este efeito, composto por jornalistas, comentadores, gente que escreve opinião pública, uns informados e outros nem por isso, políticos no governo e no parlamento, nos partidos do sistema e nas oposições, até académicos que debitam o pecado da expressão e ficam em dívida ao rigor semântico. Ao longo desta saga de quinze episódios, a palavra tarifa apareceu sempre com aspas. Com o advento do protecionismo com a chancela do presidente da Samolândia, a palavra vulgarizou-se de tal modo que só os preciosistas, ou os que continuam empenhados em fazer uso rigoroso do idioma, não escreveram a palavra “tarifa” (sem aspas) até à exaustão.

Quando se faz menção de tarifas em português no contexto da guerra comercial, é o resultado da tradução de “tariff”. Existindo no idioma nacional um vocábulo (tarifa) que soa a “tariff”, ele é o candidato natural para que a tradução seja saldada sem grande esforço. O mal é que, às vezes, a lei do menor esforço serve para armar uma barraca. Começando pelo fim da mensagem: do ponto-de-vista técnico, a retroversão certa de “tariff” é direito aduaneiro, ou direito alfandegário. Fica explicado porque, nos episódios anteriores, tarifa vinha cercada por aspas. Porque, em português, uma tarifa (sem aspas) não é “tariff” em inglês.

“Tariff”, ou direito aduaneiro, é aplicado pelo país de importação às mercadorias e serviços comprados no estrangeiro e que entram no mercado nacional. É um imposto. Quem o suporta não são as empresas que exportam para aquele país. O seu castigo é a perda de competitividade no mercado de destino – do país que impõe o direito aduaneiro – ou, na pior das hipóteses, se a taxa do direito aduaneiro for tão elevada que elimina a vantagem em exportar, a cessação das exportações. Que seja afastada esta possibilidade, retendo apenas a opção de um direito aduaneiro que não proíbe as importações, mas que penaliza a sua entrada no mercado: quem perde quota de mercado são as empresas que exportam e se sujeitam a um desgaste da competitividade; mas quem suporta o encargo do direito aduaneiro são os consumidores do país que o impõe, pagando um preço mais elevado pelos bens ou serviços importados.

Um imposto obedece a várias características: resulta da ação unilateral do Estado; é produto da coação, ou seja, do uso da força em que assenta a autoridade do Estado (os particulares não podem lançar impostos); quando o contribuinte satisfaz o pagamento de um imposto não pode exigir contrapartidas; por fim, não permite margem de manobra negocial, o contribuinte toma conhecimento do imposto que sobre ele é lançado e, dentro do prazo, tem de o liquidar. Esta definição corresponde à natureza do direito aduaneiro que um país cobra pela importação de mercadorias ou serviços. O país não negoceia esse imposto com ninguém – nem as empresas que exportam para aquele país, nem os consumidores nacionais interessados em comprar os bens ou serviços tributados, nem as empresas nacionais que importam e comercializam o produto ou o serviço no mercado nacional. Um direito aduaneiro não é uma tarifa porque é um imposto.

Todavia, também existem tarifas no idioma nacional e à sua existência corresponde um contexto técnico que é diferente de um imposto. A tarifa é o preço que se paga pela aquisição de um bem ou de um serviço. É tudo ao contrário de um imposto: é bilateral, porque é aberto à negociação entre o fornecedor e o comprador (se houver concorrência); resulta da aproximação entre a vontade do produtor e a vontade do consumidor, pois ambos têm margem de manobra negocial; o seu pagamento dá origem a uma contraprestação: o fornecimento do bem ou de serviço pago. Pagamos a tarifa aérea quando compramos uma viagem de avião, e temos direito a um lugar no avião e a outras regalias variáveis. E pagamos a tarifa elétrica, que dá direito a que a luz se acenda quando carregamos no interruptor de um candeeiro. Quando se reconhece que as tarifas são preços, exclui-se a possibilidade de elas serem impostos. Estão, e são, a antítese de impostos. 

Se continuarmos a teimar em traduzir “tariff” por tarifa, incorremos num tremendo erro. Estamos a aceitar, erradamente, que o instrumento que trava a entrada de importações no mercado nacional é um preço, quando ele é um imposto. É só recorrer a um módico de informação para não se cair no erro de errar no nome. O mundo inteiro que andou a encher a boca com “tarifas” ganhava em prescindir do comodismo típico de quem faz traduções literais para aprender conceitos cujo significado técnico lhes escapa. De preferência, com a ajuda de académicos que, muitos deles também, caíram no erro fácil da tradução literal e, eles também, encheram as bocas com “tarifas”.

A tradução de “tariff” não é tarifa, é direito aduaneiro. Para memória futura, quando outro candidato a déspota incendiar o mundo com uma guerra comercial.

14.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 15, epílogo)

Peter Murphy, “The Artroom Wonder”, in https://www.youtube.com/watch?v=3nJHniUFAdQ

Os outros países, os que tinham sido vítimas involuntárias das “tarifas” desenfreadas da Samolândia, perceberam que não podiam cair no engodo. Numa fase inicial, uns poucos meses depois de ter sido anunciada a guerra comercial, estes países estavam em terra de ninguém, desorientados, deixando vir ao de cima reações espontâneas que ateavam a guerra comercial através de retaliações. 

Ao fim de algum tempo, perante a política errática do presidente da Samolândia, com os avanços e recuos e hesitações e exceções que depois se excecionavam a si mesmas, alguns países começaram a reorganizar as ideias. Depois de ameaçarem com retaliações contra a Samolândia, entretanto suspensas porque muitas das “tarifas” bombasticamente anunciadas foram suspensas um momento anterior, países com maior lucidez perceberam que a guerra comercial era uma crise. E, como acontece com quase todas as crises, esta crise continha a sua própria oportunidade. 

Se, no início da crise, fervilhava o temor de que o mundo podia cair nas trevas da autarcia, aos poucos uma mão-cheia de países concebeu-a como um desafio de onde seria possível extrair vantagens. Este desafio parecia paradoxal. Os primeiros tempos foram de corrida às “tarifas”, mas foi quando a lucidez hibernou porque ninguém estava preparado para a contingência da guerra comercial – as pessoas não levaram a sério as promessas eleitorais de quem venceu as eleições na Samolândia, foram traídas por um erro de julgamento. 

A ideia começou a medrar e a passar de boca em boca, de país em país. Em vez de caírem na cilada da guerra comercial, era preferível isolar este país – no fundo, fazendo a vontade ao seu ensimesmado presidente. Ninguém duvidava da importância da Samolândia para o comércio internacional; era onde vários países concentravam uma parte importante das exportações, elas podiam ser vítimas das dificuldades de acesso àquele mercado devido às “tarifas”. Mas havia muito mais mercado fora da Samolândia. Isolar a Samolândia na pequenez das suas “tarifas”, sem que os outros países dessem continuidade à guerra comercial tão desejada pelo presidente daquele país, parecia ser a solução para contornar uma crise que os restantes países não tinham alimentado. 

Em vez da cilada do protecionismo, os outros países perceberam que esta era uma oportunidade para reforçar os laços comerciais recíprocos. Ao início, a tendência foi assumida na estreiteza de acordos bilaterais, formais ou informais. Aos poucos, a dinâmica de liberalização das trocas que afastava a economia mundial de um afundamento nas trevas alargou-se. Do âmbito bilateral passou-se ao âmbito regional, que depressa ateou o âmbito multilateral. Os restantes países deixavam a Samolândia a falar sozinha a linguagem retrógrada do protecionismo, mergulhada numa guerra comercial contra ninguém – numa guerra comercial cujas maiores vítimas eram as empresas e os cidadãos da Samolândia. 

No rescaldo da guerra comercial, o mundo nunca conheceu tanta liberalização comercial. As “tarifas” do presidente da Samolândia foram o seu próprio antídoto. A lucidez prosperou depois de os restantes países terem esconjurado o espectro do protecionismo, deixando a Samolândia isolada no palco da guerra comercial que ela própria montou. As pressões internas neste país cresciam todos os dias. O presidente, mergulhado numa estrénua teimosia, não se sentia acossado. Continuava agarrado às credenciais democráticas outorgadas pelos resultados eleitorais, desconhecendo que o mandato dos políticos é constantemente escrutinado entre eleições. Foi teimando e teimando nas “tarifas”, sem os resultados que esperava. Mas não podia recuar, pois a sua viril condição é incompatível com o reconhecimento de erros e sua sucessiva reparação.

Até que, alguns anos depois, e com a adesão descomprometida dos outros países à liberalização do comércio internacional sem precedentes, o Comité Nobel deu a estocada final: alguém propôs o presidente da Samolândia para prémio Nobel da Economia. A fundamentação não deixava de ser um sublime ato de cinismo. Para os peritos, foi a guerra comercial protagonizada pelo presidente da Samolândia que criou a oportunidade para a tanta latitude de que as trocas comerciais beneficiavam agora.

O tremendo ego do presidente da Samolândia impediu-o de recusar o prémio. Só não sabia (ele e os seus conselheiros da área) que discurso escrever por ocasião da entrega solene do prémio sem que lhe caíssem os dentes todos. 

13.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 14)

The XX, “On Hold”, in https://www.youtube.com/watch?v=blJKoXWlqJk

O que custa a erguer desaba num instante quando a confiança se evapora. Este era o diagnóstico da guerra comercial iniciada pelo presidente da Samolândia. Porque, nos episódios que se seguiram, o seu comportamento foi errático. Ora anunciava, com um desbragamento peculiar, que as “tarifas” não tinham marcha-atrás possível; ora metia uma tímida marcha-atrás ao anunciar, em pose munífica, que as “tarifas” estavam suspensas por noventa dias; ora começou a decretar exceções em cima das exceções, ainda durante o período da suspensão das “tarifas”.

A desorientação dominava os comportamentos. A reboque da desorientação, os países não sabiam como reagir. Viviam num estado de constante adiamento. Não conseguiam perceber se a arrogância da Samolândia era apenas uma emboscada, cerceando a margem de manobra em negociações que estivessem para acontecer. Não sabiam se a suspensão das “tarifas” seria por noventa dias; ou se, num golpe de asa correspondente a uma variação de humor, o líder da Samolândia anunciaria o encurtamento da suspensão, apanhando o resto do mundo de surpresa; ou se o comportamento errático teria expressão num tratamento diferenciado dos parceiros comerciais à conta de fatores tão diversos como o interesse comercial de um país, a proximidade diplomática com outro país, ou a simpatia do momento com um líder de um determinado país.

Confirmavam-se as advertências de muitos peritos: adicionar incerteza ao palco mundial era desfavorável para todos. Ou quase todos. Durante os noventa dias da suspensão das “tarifas”, vários países alteraram as estratégias comerciais. Como não podiam contar com a estabilidade comportamental da Samolândia, e não podiam adivinhar o que iria acontecer quando a suspensão das “tarifas” se esgotasse, estes países começaram a desviar as importações. Em vez de continuarem a importar da Samolândia, começaram a importar bens semelhantes de outros países. Nos casos em que o desvio de consumo era feito em desfavor dos consumidores (porque correspondia a uma perda de qualidade e de preço), as autoridades tiveram o cuidado de acrescentar uma campanha de informação a esclarecer os cidadãos sobre o porquê da preferência de consumo pelas importações de outros países. A preocupação pedagógica era um trunfo a favor da transparência do processo político, o que rareia mesmo em democracias maduras. 

Os países que obtinham um ganho de causa com a reorientação das estratégias comerciais acabaram por tirar partido do protecionismo decretado pela Samolândia. Todavia, não podiam confiar que esse privilégio se mantivesse durante muito tempo, porque o espectro das “tarifas”, e da sua aplicação imoderada e sem representação em critérios objetivos e racionais, continuava a pesar sobre o mundo inteiro. 

A indeterminação assustava a economia internacional, desde as empresas que participam no comércio internacional até aos governos que, nesta altura, procuravam minimizar os danos causados pelas “tarifas” e pela incerteza que continuava a pairar. Era como se navegassem por estima, desprovidos de instrumentos de localização, seguindo o faro do instinto. O que prevalecia era uma sensação de desconforto própria de quem não tem sequer um mapa para se mover num território desconhecido. Era a pior altura para correr riscos. Os países jogavam todos à defesa, cientes da multiplicação de atos de desconfiança causados por manifestações de desconfiança prévias.

Os danos na confiança recíproca prometiam prolongar-se no tempo. Primeiro, o presidente da Samolândia continuava indiferente aos outros países e à estabilidade internacional, apostando no isolacionismo que não era compatível com a História recente do país e com as suas responsabilidades internacionais. Segundo, porque as desconfianças acumuladas estavam profundamente tatuadas nos países, que não conseguiam reatar a habitual confiança que os mobilizava na relação recíproca.

Estimava-se que o restabelecimento das condições que existiam antes da guerra comercial iniciada pelo presidente da Samolândia demorasse muito anos. Esse era o pior legado do ensimesmar comercial da Samolândia. Ou, num inesperado lampejo, talvez esta fosse a oportunidade para resgatar o livre comércio das garras da Samolândia.

12.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 13)

Cocteau Twins, “Rilkean Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=lkvmjniEW0E

Havia peritos interessados em saber quem era favorecido pelas “tarifas” da Samolândia. À partida, não entendiam o que motivava as “tarifas”. Passaram as “tarifas” a pente fino, para apurar as mercadorias penalizadas e os países mais atingidos. Mas, sobretudo, para determinar os sectores da economia da Samolândia mais beneficiados por as “tarifas” desviarem consumo de bens importados para os bens fabricados na Samolândia.

Após análise exaustiva e com correção de métodos, os peritos identificaram os sectores que passaram a ser competitivos no mercado da Samolândia. Estavam longe ter importância para a economia. Os peritos estranharam a seleção dos sectores favorecidos. A escolha das mercadorias sujeitas a “tarifas” era produto do acaso, ou apenas consequência de decisões erráticas. Não descobriram um critério coerente que legitimasse uma teoria para as “tarifas” impostas.

Nessa altura, subiram a palco outros peritos. Estes peritos tinham uma outra sensibilidade e estudam fenómenos omitidos pelos primeiros peritos. Esperava-se que a parceria facilitasse a inteligibilidade das “tarifas” decididas pelo líder da Samolândia. A segunda leva de peritos dedicou a atenção a coisas mais comezinhas, da natureza humana: quem eram os donos das empresas dos sectores beneficiados pelas “tarifas”; e a identificação (ou não) de laços de proximidade com a elite que governava o país, para discernir uma causalidade.

As conclusões foram assombrosas. Quase todos os empresários proprietários daquelas empresas eram amigos do presidente da Samolândia. As suspeições avivaram-se. A relação de causa e efeito era ostensiva, derrubando a máscara da imparcialidade política que deve conduzir os negócios públicos de um país. As ligações eram tão nítidas que nem houve um módico de pudor para compor a paleta de sectores protegidos pelas “tarifas”. A segunda leva de peritos ajudou a primeira leva a formular uma teoria explicativa da ausência de racionalidade das “tarifas”.

O presidente da Samolândia estava a soldo de empresas de amigos mais chegados. Elas recebiam um subsídio disfarçado de “tarifas”, correspondendo a uma inaceitável transferência de rendimento dos contribuintes para esta elite. Outros sectores vieram a palco reivindicar o mesmo apoio. A discriminação era inaceitável e corrompia a imparcialidade e a objetividade que devem influenciar as decisões políticas. As motivações particulares do presidente da Samolândia eram o denominador comum ao apreciar as empresas beneficiadas pelas “tarifas”. Os adversários cerraram fileiras e acusaram-no de nepotismo (um crime com punição prevista nas leis penais). 

Nesta altura, a Samolândia estava repleta de manifestações de perplexidade. Houve quem acusasse o líder da Samolândia de privatizar a ação pública com a contaminação dos seus interesses pessoais. Outros levaram a acusação mais longe: a maneira como se tornou permeável aos interesses dos amigos entranhava a violação de princípios democráticos, o que serviu de base para o incriminarem e para alimentarem uma proposta de deposição do presidente de acordo com o processo previsto na Constituição. Argumentavam: o presidente está a minar a democracia e a atropelar a longa História de sedimentação das instituições políticas.

De fora também houve vozes a protestar. Não estavam incomodados com as entorses democráticas, pois não tinham legitimidade para ingerir nos assuntos internos da Samolândia. Todavia, as “tarifas” causaram distorções inadmissíveis que prejudicavam empresas destes países. Por outro lado, estes países estavam com receio de que a ausência de critério das “tarifas” da Samolândia cristalizasse a arbitrariedade que penaliza todos. Uma coisa é estimar que este ou aquele sector vão ser beneficiados por uma “tarifa” devido ao peso que ocupam na economia do país, ou porque a contexto especial de um certo tempo justifica proteger temporariamente um sector; diferente coisa é a incerteza que se entroniza na geografia da arbitrariedade. 

Alguém comentou, a propósito, que os países que queiram perceber a lógica das “tarifas” da Samolândia devem socorrer-se de peritos que saibam decifrar a personalidade do presidente do país e a sua teia de amizades e conhecimentos. Estes passariam a ser os conselheiros de política comercial mais requisitados, a manter-se a teimosia protecionista e a arbitrariedade como pano de fundo das decisões do líder da Samolândia.

9.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 12)

Kiasmos, “Looped” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=pRbInltGMaA

Não era só o embargo internacional que incomodava a Samolândia. Um movimento cidadão começou a fervilhar também em partes da Samolândia. Era o sinal de que a democracia ainda estava amadurecida, com a oposição ao governo a fazer o seu papel de oposição e certos grupos de interesse prejudicados pelas “tarifas” a manifestarem o protesto. 

Um movimento inorgânico de cidadãos começou a fazer-se notar. Rompendo o véu de ignorância que seria tão conveniente ao presidente da Samolândia, estes cidadãos ativaram a condição cidadã e passaram ao protesto – primeiro nas ruas, depois como ação concertada, na forma de um embargo cidadão interno.

Não foram no canto da sereia do líder da Samolândia. Não se deixaram convencer pela retórica unilateral e messiânica como legitimação da guerra comercial que o país iniciou. Aos primeiros sintomas desfavoráveis após a ativação das “tarifas”, perceberam a escala de efeitos adversos: os preços das mercadorias importadas subiram; em alguns casos, subiram tanto que a sua compra tornou-se proibitiva; alguns produtos de empresas da Samolândia ficaram mais caros, porque na sua produção entram matérias-primas compradas no estrangeiro que, por ação das “tarifas”, encarecem; o desvio de consumo do “made in” países estrangeiros para “made in” Samolândia correspondeu a uma perda de qualidade do consumo; a inflação começou a morder no bem-estar dos consumidores, sem que os salários tenham acompanhado o aumento da inflação. A conjugação destes sintomas foi o gatilho para a insatisfação que motivou protestos de rua que se foram tornando mais assíduos e massificados. Cada vez mais gente entendia que as “tarifas” com o cunho do líder da Samolândia tinham degradado a situação económica e social.

Por mais que o presidente da Samolândia fosse conhecido pela teimosa, a certa altura não podia continuar a ser insensível ao clamor popular. As avenidas das cidades enchiam-se com vozes de protesto que exigiam a marcha-atrás na guerra comercial. Os conselheiros mais próximos do presidente começaram a ecoar palavras de preocupação. Por mais messiânico que o presidente quisesse ser, as dores do protecionismo já eram sentidas nos bolsos das pessoas – e bem no fundo dos bolsos. As suas justificações começaram a esgotar o capital de aceitação. Ainda que o presidente da Samolândia se desdobrasse em explicações amadoras e pedisse paciência aos cidadãos – dizia, a partir de certa altura: os benefícios das “tarifas” só vão ser sentidos daqui a algum tempo –, as pessoas queriam saber quando era “daqui a algum tempo”. Perante as evasivas e as omissões, esgotaram a paciência. 

Para muitas pessoas, a guerra comercial era um capricho do presidente da Samolândia. À falta de uma fundamentação convincente e na ausência de resultados que atestassem a bondade das “tarifas”, atestavam os seus efeitos contraproducentes. Pairava no ar uma sensação de frustração pelas perdas de bem-estar que se generalizavam (com a exceção de um reduto de pessoas próximas ao líder da Samolândia que conseguiam extrair ganhos de causa – ver episódio 13). Nas ruas onde ecoavam os protestos, a guerra comercial perdera legitimidade. Era uma guerra fratricida (ao nível internacional) e punitiva (internamente).

O líder da Samolândia teimou em resistir. Recusou receber representantes dos movimentos de cidadãos que, entretanto, tinham deixado de ser inorgânicos. Argumentou que a sua legitimidade democrática estava blindada pelo poder do voto que o elegeu. Continuou a teimar na aplicação das “tarifas”, indiferente aos protestos que se massificavam e tornavam mais assíduos, sem perceber como era responsável pelo estilhaçar da democracia e pela destruição da economia. E ignorando os ventos da História: tantas vezes a indiferença dos líderes pelo clamor popular terminou com a sua deposição, às vezes violenta.

8.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 11)

The Hard Quartet, “Heel Highway” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=QP484Sacekg

Vozes dissidentes, que o eram sem ser pelo prazer da pura dissidência, propunham que só os incompetentes recorrem à burla para mitigar os efeitos da incompetência. Os que não temem os concorrentes mostram a cara e dispensam artifícios. A regra do jogo devia ser essa: quem consegue vingar no mercado onde se transacionam mercadorias e serviços vai a jogo com as armas que tem, sem substâncias dopantes que distorçam as capacidades dos concorrentes.

A teoria começou a passar de boca em boca e a ser divulgada na imprensa e na televisão. Por mais que os advogados de defesa do protecionismo comercial desmentissem a validade da teoria, ela foi arroteando caminho. Em condições normais, com os decisores sensíveis ao clamor popular, a popularidade da teoria fá-los-ia mudar as orientações escolhidas. Porém, o presidente da Samolândia continuava a defender as “tarifas” com uma convicção à prova de bala – e, portanto, à prova de quaisquer teorias que desmontassem as virtudes das “tarifas”, pois depressa essas teorias eram reduzidas à invalidade, ou a uma conspiração de conspirações, pelos arquitetos da nova verdade. 

O líder da Samolândia nem sequer foi sensível a conversas mantidas em privado com líderes de outros países. Eles tentavam convencê-lo que as “tarifas” espalharam danos por todo o mundo. Como se vivesse mergulhado num mundo só dele, o líder da Samolândia negava com veemência as provas apresentadas pelos seus interlocutores e terminava abruptamente a conversa. As provas, que seriam irrefutáveis para um perito, eram a imagem vívida das conspirações segregadas só para degradar a imagem pública do presidente da Samolândia.

Os outros líderes eram porta-vozes dos peritos que, apoiados em boa ciência, queriam dar um modesto contributo para o armistício comercial. Como às vezes é preciso montar uma retórica acessível aos que têm menos capacidades cognitivas, os peritos desceram ao nível do discurso para crianças. As empresas que participam no comércio internacional eram vistas como desportistas envolvidos numa competição. Nos certames desportivos, perfilam-se os favoritos e os que só conseguem aspirar a ser figurantes. Uns e outros entram na competição com diferentes metas. Dificilmente os segundos podem aspirar a medalhas; os primeiros têm legítimas esperanças de figurar no olimpo. Não se exclui a hipótese de os resultados serem imprevistas, com um figurante a conseguir uma proeza inesperada ou um favorito a desistir da competição ou a ficar mal classificado.

Nas competições desportivas há controlos antidoping para impedir que os concorrentes falsifiquem os resultados. Vigora um código ético entre os concorrentes que os leva a serem reciprocamente leais. Na hipótese de um deles desertar do código de ética e se servir de substâncias dopantes, vai ser descoberto no controlo antidoping. Só tem a perder em recorrer à fraude: ao ser descoberto pela análise à urina, perde o lugar que ardilosamente tinha conquistado; também perde o respeito dos adversários, passando a ser visto como alguém que não é confiável; e cai em desgraça junto do público, que tem o seu próprio código ético e depressa ativa uma forma de censura social que isola o infrator e o condena, muitas vezes, ao fim precoce da carreira desportiva. Quando um dos favoritos é apanhado pela análise antidoping, a censura social e dos pares é ainda mais contundente: como favorito, a sua responsabilidade pelo cumprimento do código ético é maior. 

A atitude do presidente da Samolândia encaixa-se nesta narrativa. Quem primeiro recorreu às “tarifas” foi a Samolândia, com o argumento (ou o pretexto) de elas serem necessárias para recuperar a competitividade das mercadorias que a Samolândia vende para o exterior e das que são viradas para o mercado nacional. Foi o próprio presidente do país que admitiu a incapacidade das empresas do país ao decretar o início da guerra comercial. Anunciou: preparem-se, que as empresas do país vão tomar doping. 

A Samolândia tem mais responsabilidade na manutenção da estabilidade internacional do que qualquer outro país – é intrínseco ao seu estatuto privilegiado no mundo. Ao dar o tiro de partida da guerra comercial, demitiu-se desta responsabilidade – foi como ser apanhada no controlo anti-doping. Deixou o mundo órfão de uma referência de estabilidade, o que é irrelevante para o líder da Samolândia, cada vez mais ensimesmado. A Samolândia deixou de ser reconhecida pelos outros como o país hegemónico que assegurava a estabilidade mundial. 

Dando razão aos peritos, a Samolândia só tinha a perder, como perdeu, em iniciar a guerra comercial. Já o presidente da Samolândia continuava convencido que o resto do mundo é que está errado.

7.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 10)

Deftones, “Hole in the Earth”, in https://www.youtube.com/watch?v=LnI_QIXU058

O sismo das “tarifas” tinha réplicas políticas por todo o lado. Metido no lodo protecionista, o líder da Samolândia passara a ser o antídoto oferecido às eleições noutros países. 

Era um efeito paradoxal: os descendentes políticos do presidente da Samolândia prosperavam com a velocidade com que se propagam vírus, numa nova internacional ideológica que pretendia varrer da paisagem política os governos que tivessem orientação política antagónica. Fora da Samolândia começava a medrar a repulsa pelo que o presidente daquele país e a sua linhagem ideológica representavam. Aos poucos, os seguidores da causa, acriticamente aplaudindo tudo e um par de botas que o presidente da Samolândia decidisse, iam perdendo eleições. Perdiam eleições porque a maioria dos eleitores desviava votos a favor da alternativa política antagónica do candidato politicamente herdeiro do líder da Samolândia. 

Estas ondas de choque não demoveram o presidente da Samolândia. Convencido da superioridade e da infabilidade das suas decisões, por mais que muitas delas fossem erráticas, mantinha-se fiel aos seus pergaminhos. Por isso não abandonou as “tarifas” até quando alguns conselheiros o aconselharam a repensar a deriva do protecionismo comercial. Esta foi uma obstinação entre muitas outras. Fora da Samolândia, para além do recurso ao embargo cidadão, muitas pessoas, cada vez em maior número, decifraram os danos causados pelas “tarifas”. Responsabilizaram o líder da Samolândia por esses danos. E vingaram-se, num embargo eleitoral, nos candidatos que prometiam a importação das políticas erráticas do presidente da Samolândia.

Mas as ondas de choque não pararam no momento em que cada um dos promitentes sósias do presidente da Samolândia perdeu eleições ou perdeu votos em relação a eleições anteriores. Ao início, esses sósias estavam renitentes em desafiar o guru político, engolindo as derrotas eleitorais em seco e não admitindo uma relação de causa e efeito entre essas derrotas e a vacinação da maioria do eleitorado contra a agenda unilateral do presidente da Samolândia. 

Com a sucessão de desgostos eleitorais, os descendentes ideológicos do líder da Samolândia começaram a pensar duas vezes. Por maior que fosse a lealdade perante quem os inspirava, não podiam adiar o desconforto. A certa altura, começaram a admitir que as derrotas eleitorais eram, em parte, motivadas pela influência negativa que o presidente da Samolândia exercia. Por mais que lhes custasse a admitir a soberania popular sublimada no momento em que os eleitores depositam os votos nas urnas (alguns desesperados acusaram o eleitorado de ignorância; e outros houve que, em deslizes reveladores, questionaram a legitimidade dos resultados das eleições), aos poucos libertaram-se das amarras da lealdade acrítica e começaram a duvidar da viabilidade das políticas inspiradas na agenda dogmática do presidente da Samolândia e na sua retórica musculada.

Os possíveis descendentes que mais depressa desertaram protestavam, timidamente, contra os dogmas e a obstinação do líder da Samolândia. Os mais ousados levantaram a voz contra a influência do inspirador, reconhecendo que era negativa e atuava a favor dos candidatos e das forças políticas que se situavam fora da esfera de influência ideológica de quem governava a Samolândia. Algumas destas lealdades começaram a estilhaçar. Afinal, o cimento que sedimentava uma internacional ideológica de sentido contrário a outra internacional de antanho (entretanto extinta) não aguentou as primeiras provações. 

Em muitos países, os cidadãos tiveram a palavra final e condenaram à derrota os descendentes ideológicos do líder da Samolândia. Os seus seguidores perdiam gás ao ter sido ativado o embargo eleitoral ditado pela reanimação dos cidadãos, sensíveis ao espectro do presidente da Samolândia e aos danos que estava a causar no bem-estar. E a possível internacional abortou antes de se ter materializado.

6.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 9)

The Limiñanas, “Salvation” (Live Cuts at Abbey Road), in https://www.youtube.com/watch?v=3NJC20AeU0w

Alguém disse: “é salutar quando a cidadania é ativada e se substitui à inércia do processo político, colonizado por interesses alheios ao interesse comum, à medida que a cerviz dos políticos se inclina em favores que passam debaixo da mesa, sem escrutínio dos órgãos que materializam a democracia.” E depois contextualizou: havia cada vez mais países a retaliarem espontaneamente contra o protecionismo absurdo da Samolândia. 

Não era uma retaliação costurada pelos mecanismos oficiais, como uma “tarifa” aplicada para invalidar os efeitos de uma “tarifa” antes imposta por outro país – como se fosse possível um mal compensar o dano causado por um mal anterior. Desta vez, a cidadania informada ultrapassava as limitações do processo político. Um pouco por todo o lado, em reação às “tarifas” absurdas ativadas pela Samolândia, cada vez mais cidadãos se recusavam a comprar mercadoria expedida por empresas da Samolândia. Era um embargo cidadão, a coragem que se suplantava ao processo político timorato que retaliava para espalhar os danos do protecionismo, ou refreava a vingança mas ficava à mercê da emboscada do país que deu o primeiro passo para o abismo protecionista.

As pessoas informavam-se. Deploravam a arrogância do líder da Samolândia e percebiam o mal que a embriaguez de “tarifas” ia causar. Foram passando da quase indiferença inicial ao atestado de pária que aos poucos muitos foram colando ao líder daquele país. Reconheciam que as empresas da Samolândia não podiam ser culpadas pela corrida às “tarifas” (exceto aquelas que andaram, em público ou às escondidas, a mendigar “tarifas”), mas os cidadãos informados tinham de atuar. Alguém tinha de ser chamado à responsabilidade. Na impossibilidade de cativar a atenção do presidente da Samolândia, teimosamente convencido da bondade da guerra comercial, estes cidadãos ativos endossaram a responsabilidade para as empresas da Samolândia. Admitiam que a vingança é feia, mas às vezes é o último recurso. Elas que exercessem pressão sobre as autoridades políticas da Samolândia para recuarem na guerra comercial.

Era tanta a responsabilidade cívica, que estes cidadãos estavam dispostos a substituir o consumo de mercadorias fabricadas na Samolândia por produtos equivalentes importados de qualquer outro lugar. Nem que tivessem de pagar mais caro. Nem que tivessem de sacrificar a qualidade. Os tempos eram diferentes, numa rotura com a normalidade a que se tinham habituado, intrínseca à existência de um grande mercado mundial onde vingavam os mais competentes.

A Samolândia estava de pantanas. Se o presidente ofereceu, como um dos pretextos para as “tarifas”, a correção do desequilíbrio entre importações e exportações, o embargo cívico arruinou a balança comercial. As exportações da Samolândia caíram a pique e, pese embora as “tarifas”, as importações continuavam a entrar no país.

No meio da desorientação, e cada vez mais acossado pela pressão das empresas que eram vítimas do embargo cidadão, o presidente da Samolândia apertou a goela do protecionismo: voltou à escalada das “tarifas”, aumentando-as. Ao mesmo tempo, foi insinuando que os governos dos países mais ativos no embargo cidadão deviam educar os súbditos, como se pudessem ordenar a retratação de intenções e os obrigassem a comprar mercadoria expedida pela Samolândia. Desconfiava-se que a diplomacia da Samolândia se desdobrava em esforços invisíveis para influenciar os governos destes países. 

Até que alguém quis lembrar o presidente da Samolândia o significado de ingerência. Indiferente ao conceito, colando ao peito o crachá “MAGA”, desviou o assunto, reconhecendo: “homessa, então no passado a Samolândia não se fartou de ingerir e poucos se importaram?” Como último recurso, um funcionário júnior da casa civil da presidência abriu timidamente a boca para evocar outras experiências totalitárias, entretanto desaparecidas da geografia do mundo, de como deram mau resultado e constituíram soezes atentados à liberdade.

Iracundo, o presidente da Samolândia despediu o rapaz. 

5.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 8)

The Prodigy, “Smack My Bitch Up” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OjakbV29nyE

A fortaleza do protecionismo abria brechas. Depois da bazófia inicial, com triunfantes entradas em cena do líder da Samolândia a jurar uma tempestade “tarifária” para acentuar a hegemonia do país, as exceções começaram a sair a conta-gotas. Afinal as “tarifas” aplicavam-se a tudo e a todos menos a este ou àquele produto, menos a este ou àquele país – e mais um, e outro, e outro ainda. A bravata das “tarifas” começava a esmorecer, à medida que as exceções eram necessárias para, afinal, não atirar a Samolândia para os prejuízos pela guerra comercial a que deu origem.

Os outros países copiaram a estratégia. Para exceção, outra exceção recíproca. A cada exceção que se soerguia, o reconhecimento de que os obstáculos às trocas comerciais eram contraproducentes para o país que levantava as barreiras alfandegárias. O líder da Samolândia não aparecia a admitir que teria de haver esta ou aquela exceção – mandava os lugares-tenentes, para não destruir a imagem de voluntarioso engenheiro de uma nova ordem que garantia o resgate da grandeza possivelmente perdida, entretanto, do país a que presidia. Da mácula não se livrava: cada exceção era um recuo nas musculadas intenções de sitiar outros países atrás da cortina das “tarifas”.

Quando se pensava que a guerra comercial pomposamente anunciada pelo presidente da Samolândia tinha aberto uma caixa de Pandora, percebia-se que o emaranhado de exceções e exceções a exceções era outra caixa de Pandora nascida dentro da primeira caixa de Pandora. Já poucas pessoas sabiam ao certo que mercadorias se sujeitavam a “tarifas”, quem as aplicava e a que taxas eram aplicadas e, sobretudo, quem as excecionava e para quem. O comércio internacional tornou-se um puzzle indecifrável. 

A certa altura, as empresas habituadas a participar no comércio internacional já não sabiam o que era pior: se um clima homogéneo de protecionismo, ou a indefinição provocada pela multiplicação de exceções e mais exceções. A segunda caixa de Pandora carregava na tecla da incerteza: obter informação sobre a aplicação ou não de “tarifas” e, no caso afirmativo, se estavam ao abrigo de exceções que as isentavam por especial favor, tornara-se numa empreitada intimidante. Os departamentos de comércio externo das empresas tiveram de contratar mais gente (ele há sempre uma escondida vantagem atrás de um mar de inconvenientes). As empresas não tinham cenários claros do futuro que ajudassem a planificar a produção. Passaram a jogar à defesa para não serem apanhadas a meio de uma tempestade “tarifária” inusitada e ficarem com existências em excesso. Em vez do modo de produção plena, entraram num modo defensivo, intrínseco à densa nuvem de desconfiança que se abateu sobre o comércio internacional, passando a produzir abaixo das capacidades. Ato contínuo, a Economia meteu a marcha-atrás.

O emaranhado de exceções em cima de exceções aqueceu a incerteza. A rede de exceções às “tarifas” raramente se fundamenta em decisões racionais, a não ser o reconhecimento – tardio – de que as “tarifas” devem ser suspensas para esta mercadoria que tenha origem naquele país. Paira a impressão de arbitrariedade. Hoje exceciona-se, mas ninguém sabe por quanto tempo. De boca em boca, passa o rumor de que a concessão de uma exceção a esta mercadoria importada daquele país resulta dos bons ofícios para-diplomáticos. Insinua-se que as manobras subterrâneas concorrem para a ativação de uma certa exceção. A falta de critério ateia a incerteza e a suspeição. Todos desconfiam de todos, mas ninguém o admite para não desperdiçar o capital de influência que mais tarde possa ser necessário para convencer um país importador a excecionar a aplicação de “tarifas” às suas exportações. Como as exceções têm a forma de suspensão de “tarifas”, nunca se sabe quando podem ser retomadas.

A cacofonia das exceções às “tarifas” gerou um palco que se assemelha à terra de ninguém. É uma orfandade denotativa do vazio em que caiu a ordem internacional. Quem tinha responsabilidades na estabilidade internacional demitiu-se da função, encantado com o ilusório exacerbar da sua hegemonia à boleia da vontade unilateral imposta sobre os demais. Não conseguiu nem uma coisa nem a outra. Todos ficaram pior do que estavam.